Minha Sombria Lolita

Esse texto vai tratar de dois livros que abordam abuso sexual infantil. Se você se sente desconfortável com esse tema, não recomendo a leitura.

Eu me pergunto o que seria do mundo sem Lolita. O livro trata-se do relato de Humbert Humbert, escrito uma noite antes de seu julgamento. Ele conta sua grandiosa história de amor com Lolita, sua amante de 12 anos. Evidentemente, não se trata de amor, mas sim de estupro de vulnerável; a questão aqui é que Humbert narra como se fosse amor — e a narração é bem-sucedida.

Se engana quem pensa que o leitor “entra na mente de Humbert” ou que “vemos a história da perspectiva dele”. Nós não conhecemos Humbert — nós somos enganados por ele. Os episódios que compõem sua história com Lolita não são narrados, mas sim manipulados. Cada palavra usada é escolhida a dedo. Humbert não é um homem desequilibrado; ele não é o tipo de pedófilo que atrai crianças com doces. Humbert tampouco usa a força para sequestrar vítimas mais fracas.* Humbert, na verdade, engana homens e mulheres maduros através das palavras que usa para narrar os episódios que, por sua vez, contribuem para a construção de uma história de abuso infantil em um plano mais amplo. Basta lembrar das censuras que o livro Lolita sofreu em diversos países; nada disso foi em decorrência de um moralismo reacionário. Com efeito, a censura de Lolita foi promovida por parte de uma classe de intelectuais enganados por Humbert. Não se trata de uma ofensa; não é sobre ler Lolita com olhar ingênuo ou ignorar detalhes relevantes por mera burrice — isso jamais deve ser presumido. Trata-se, é claro, de um narrador perspicaz. O trecho determinante aparece no final. É aquele em que Humbert diz que gostaria de fazer filhas com Lolita, para então fazer filhas com essas filhas. Esse é o limite ao qual Humbert nos conduz: ler isso e continuar lendo, porque ainda não acabou. É a linha que separa o desprezível do abominável, do censurável.

De volta à Vanessa, não é a toa que a protagonista menciona esse trecho da obra como um de seus menos favoritos. Ela vive sua vida presa no passado adolescente — um passado repleto de experiências traumáticas. Coagida a mentir, Vanessa alega ter inventado sobre seu relacionamento com o professor e, como punição, é expulsa da escola após se humilhar diante de seus colegas. Contudo, sua história com Strane não termina nunca. Eles continuam a se encontrar clandestinamente enquanto ela é adolescente e, mesmo depois de adulta, os encontros não chegam ao fim. Vanessa é adulta no ano de 2017, quando a mídia passa a noticiar diversos relatos de abuso sexual, e vêm à tona outros casos envolvendo Strane. Diante de tantas evidências, Vanessa é obrigada a encarar sua história como ela realmente é: um caso de abuso sexual infantil, envolvendo estupro de vulnerável.

Desse modo, não resta dúvidas em relação ao fato de que tanto Vanessa, quanto Lolita são vítimas. Os dois livros se diferenciam pela perspectiva: Minha Sombria Vanessa é narrada do ponto de vista da vítima, ao passo que Lolita é narrado do ponto de vista do agressor.

* Não se trata de diminuir, de forma alguma, as vítimas dos mais diversos tipos de abusadores; trata-se apenas de evidenciar a diferença no modo como Humbert atua.

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